Por Manoel Fernandes Neto
Foto divulgação Companhia das Letras
Tenho sobre minha mesa o livro Contra o Fanatismo (2002, Ediouro), do consagrado autor israelense Amós Oz. Gosto de ter acesso fácil a trechos marcados a lápis, após inúmeras releituras. A obra serve para compreender, em parte, os fanatismos — não somente o presente no conflito secular árabe-israelense, mas também nos dias atuais, tão cheios de fanáticos em esferas políticas e sociais. Oz tem algumas definições precisas sobre o que vem a ser um fanático.
O livro é um dos indispensáveis do autor — entre tantos. Uma compilação de conferências proferidas por Oz na Alemanha, em 2002. Suas reflexões continuam atuais, em um planeta que ainda não compreendeu os fanatismos e segue sendo devorado por eles.
O escritor, que faleceu em 2018, é uma das vozes mais respeitadas de seu país e do mundo. Dentro de Israel, transitou com suas palavras, debates e diálogos pela esquerda, centro e direita; sempre ouvido, criticado e ponderado por intelectuais e autoridades — em um país que preserva seus pensadores e não bloqueia seus debates.
“Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de forçar as outras pessoas a mudarem. A inclinação comum de melhorar seu vizinho, de consertar seu cônjuge, de guiar seu filho ou de endireitar seu irmão, em vez de deixá-los ser.”
Oz descreve uma série de características do fanático com um olhar admirável, utilizando muitas vezes uma ironia refinada — com exemplos que já conhecemos:
“O fanático é uma criatura bastante generosa. É um grande altruísta. Frequentemente, o fanático está mais interessado em você do que nele próprio. Ele quer salvar sua alma, quer redimi-lo, quer libertá-lo do pecado, do erro, do fumo, de sua fé ou de sua falta de fé; quer melhorar seus hábitos alimentares ou curá-lo de seus hábitos de bebida ou de voto. O fanático importa-se muito com você: ele está sempre ou se atirando no seu pescoço, porque o ama de verdade, ou apertando sua garganta, caso você prove ser irrecuperável. E, de qualquer modo, falando topograficamente, atirar-se no pescoço de alguém ou apertar sua garganta é quase o mesmo gesto.”
Em Contra Fanatismo, ele também registra a capacidade dos moderados, dos dois lados dos conflitos e dos espectros: “Somente os moderados de cada sociedade são capazes de conter os fundamentalistas.” Mas também fala da imaginação e da literatura na contenção ao fanatismo, mas em uma pequena medida e de forma cautelosa como “antídoto ao fanatismo ao injetar imaginação e seus leitores”. Alerta que “infelizmente as coisas não são tão simples, pois muitos poemas, muitas histórias e peças de teatro ao longo da história foram utilizadas para aumentar o ódio e a ‘superioridade moral’ da nacionalismo”
Paixões e mutações
Amós Oz tem uma obra cativante. Retratou a história de sua família, de Israel e das guerras — foi militar e esteve à frente de batalhas, como a maioria das pessoas de seu país. Viveu grande parte da vida em kibutz, dividindo tarefas, direitos e deveres; inclusive os royalties de seus primeiros livros. Mudou-se do kibutz com a família apenas na vida adulta. Com ficção e não ficção, sua obra se dedica a esse espaço narrativo: a formação de um país, seus conflitos e incoerências. De alguma forma, esse percurso oferece um tipo de acolhimento histórico ao leitor, por sua linguagem simples, sem floreios ou excessos.
Após sua morte, muito já foi escrito sobre Amós Oz. Para encerrar esse texto, destaco dois episódios, de obras recentes, que demonstram suas paixões e mutações.
O primeiro é do livro Meu Amós (2023, Companhia das Letras), um relato emocionante de sua esposa, Nili Oz. Em um trecho, ela conta como o idioma natal era sagrado para ele. Numa viagem à Roma, Itália, diante de uma prateleira de guias turísticos em diversos idiomas (inclusive em hebraico), Amós chorava em silêncio. Ao ser questionado sobre a emoção, respondeu: “Não tem guia em latim” — o que, para ele, significava que os romanos haviam sido derrotados.
Outra revelação está em Do que é feita a maçã (2019, Companhia das Letras), uma série de conversas entre Amós Oz e sua editora, Shira Hadad, sobre literatura, criação artística, religião, política e diversos temas polêmicos. Em um dos trechos, Oz confessa ter perdido o “ímpeto” de zombar das crenças e ideias sem fundamento; e também daqueles que “acreditam em milagres”, superstições ou símbolos sagrados:
“O mundo é horrível, e vidas terminam mal, e vidas de todos nós terminam com depressão, com doenças, com demências, com mortes. E, ao longo do caminho, não são poucos os sofrimentos, as decepções e as perdas. Então, o que me importa se alguém encontra um pequeno consolo quando beija um talismã? Ou se prostra diante dos túmulos de santos?”
Manoel Fernandes Neto é pioneiro na Internet; jornalista, escritor e curador de conteúdo (manoelfernandesneto.com.br). É colaborador do projeto experimental vidadelinks.com.br.