Leio que uma confeiteira inglesa tem em seu cardápio doces com decoração inspirada em doenças, feridas e órgãos humanos. Uma notícia em um momento em que ando a pensar sobre restos humanos. Não pense que me tornei um. Às vezes, confesso, me sinto um errante.Daqueles do seriado The Walking Dead. Algo que não merece registro, porque apreendi a reagir. Ao perceber que continuo consciente, ser pensante; postando, compartilhando, escrevendo. Mas ultimamente reflito sobre o sentido metafórico de “estar morto”. Assim como a série americana, que entusiasma plateias e arrebata altos índices de audiência para a rede AMC. Com gente comendo gente. No sentido literal, logicamente.
É o velho enredo de zumbi, mortos-vivos. Este do The Walking Dead baseado em famoso quadrinho. Um cult. O traço e a série de TV. Uma terra arrasada por algo estranho, ainda não explicado nesta 3ª temporada. As pessoas transformando-se em mortos-vivos, errantes, vagando por um mundo sem lei, sem normas, sem exércitos constituídos, sem governos. Todos arrasados. Comidos.
O que era para ser o delírio dos anarquistas transforma-se no pesadelo de liberais e conservadores. Sem controle, reina no Planeta a lei do mais forte – alguma novidade? Velho oeste, lei do cangaço, escreveu não leu, leva uma mordida ou uma paulada. É cult porque se consegue assistir além do sangue e intestinos pelo chão, para quem tem olhos de ver.
Perfil do errante
Um errante não se importa com nada, além de sua alimentação. Pode se servir de vísceras, empapuçar-se até cair. Ele nunca se sente saciado. Não tem sentimentos nem limites. Não tem compaixão; sua vida é sua satisfação pessoal, sem se importar com qualquer outro tipo de sentimento. Sem empatia, não tem espírito de grupo, anda junto aos outros, mas não desenvolve amizade nem solidariedade, não troca ideias. Caminha com milhares na mesma direção, o chamado “efeito boiada”, mas nenhum deles sabe para onde está indo.
Conhece alguém desse jeito, ou se identificou? Escute mais.
Um errante não tem assunto. E quando abre a boca são os mesmos gemidos, com os mesmos significados de tantos e tantos errantes. Tornou-se errante porque morreu, ou levou uma mordida de outro errante. Eles são todos iguais. Não mudam. Vestem-se de maneira igual. Andam de forma igual. E se alimentam exatamente das mesmas coisas. De outros seres, de outras pessoas. Sintomático, só poupam a si mesmos. Se eles percebem que você exala o mesmo odor que o deles, eles não o atacam. São previsíveis, lentos de movimento, zero de raciocínio, mas nem por isso inocentes. Você conheceu um único, conheceu todos.
Espectro humano
Não pense, no entanto – e o seriado e metáfora demonstram isto – que o fato de você não ser um errante quer dizer que você é do “bem”, acima de qualquer suspeita. O bem, o mal, ou “mais ou menos”, continuam existindo em um mundo tomado de errantes. O espectro de tipos e intenções dos humanos é imutável em um mundo preservado ou destruído. Em The Walking Dead tem gente coroada de intenções, que se contorce de dor a cada errante que cai por terra com um golpe fatal na mente. Sim, eles só são destruídos quando atingidos no cérebro, o órgão físico da inteligência. Sintomático, não?
Os bárbaros do filme, os chamados “do mal”, vibram com o mundo tomado de errantes, porque podem criar núcleos sem leis, sem normas, em que são aclamados como santos e heróis. Em que usufruem de toda a liberdade de manipulação, com o discurso de que tornarem-se a salvação do mundo e o que de fato é inimigo são aqueles que não concordam com seus salvadores. Baseado nisto, torturam e perseguem os do “bem”, e se divertem com os errantes, colocando-os em uma arena como diversão de sábado à noite, ou como tiro ao alvo. Já viu algo assim?
Desejo on the road
Mas a luta entre bem e mal é somente aparente, para manter o enredo, a audiência e a rotina de uma sociedade que ainda não sabe encontrar novas agendas da luta entre os opostos e a sobrevivência insana de acordo com os interesses dos mais fortes. Ou contra todo mal encarnado e as hordas de errantes que caminham pelo mundo somente com o intuito antropofágico. No âmago do mundo The Walking Dead, a desconfiança é geral e, mesmo que você esteja coberto de boas intenções, não hesitará em derrubar seu melhor amigo por uma discordância, um caso de amor, ou caso ele se torne um errante. Um sensação de Déjà vu nos vem a cabeça.
Mas não são somente tantas similaridades ao nosso mundo tomado por “mocinhos”, “bandidos” e “errantes” que fazem a consagração da série. The Walking Dead também proporciona sentimentos. Cenas antológicas de errantes caminhando solitários no melhor espírito on the road, sem nada a temer, sem destino e sem consciência do mundo à sua volta tocam nossos desejos mais profundos. Quem nunca quis sair pelo mundo, errante, só em busca de prazeres íntimos, carnais, sem responsabilidade e sem se preocupar com o que pensa a sociedade? Confesse e você ganha um pedaço de estômago.
Em resumo: The Walking Dead traz o nosso mundo – real – para as telas da TV em uma grande metáfora. Mundo em que as chances são enormes de nos tornar alienados, errantes. Vísceras abertas, borbulhando sangue, oferecidas pelo mainstream empresarial, religioso, social e político, com suas propostas de consumo, da vida perfeita, de um deus de plástico, da estética corporal como norma, do pensamento higienista que exclui o mais fraco em nome do bem comum. Todos, alimentos que nem sempre conseguimos distinguir como saudáveis ou não.